SISTEMA DE GARANTIAS DE DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL

 

Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima (*)

 

 

No Brasil a superação do paradigma da situação irregular em relação à infância e à adolescência consistiu em uma dinâmica jurídica e política renovadora. Na década de oitenta, entre a discussão do conteúdo da Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança (CNUDC) até a sua efetiva consolidação em 20 de Novembro de 1989, o  país estava vivenciando a superação do vintênio ditatorial. A passagem histórica de uma fase de restrição de direitos, de complexa limitação jurídico-social-econômico-cultural, para o momento posterior de afirmação constitucional de Estado Democrático de Direito, ensejou múltiplas repercussões para diferentes segmentos populacionais.  No entanto, o eixo democrático se projetou de forma especialmente diferenciada sobre o grupo infanto-juvenil. Esta ênfase se deve, entre outros fatores, às características da “proteção” perversa que o Estado conferia aos menores até então: uma atuação intramuros no espaço institucional disciplinador para os carentes, abandonados, inadaptados ou infratores. Configurava-se, assim, uma prática discriminatória do Estado que remetia para a esfera jurisdicional matéria de conteúdo eminentemente social, pedagógico, psicológico, familiar. O recorte intervencionista que se fazia na vida de crianças e de adolescentes era de caráter vertical, impositivo, sem respeito aos princípios humanitários, com inobservância dos direitos humanos e sem programa para a recuperação e a reintegração em ambiente que pudesse estimular a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança. Assumia o juiz de menores, portanto, uma condição centralizadora, mediante a qual a sua decisão monocrática conferia a indicação do ponteiro para o futuro de cada criança e de cada adolescente: somente o juizado, com um quadro de agentes, “comissários de menores”, exercia a função repressivo-protecionista, com eventual inclusão de natureza assistencialista dos setores caritativos da sociedade cuja prática filantrópico-apartadora coloria de palidez a natureza participativa então viável. Era este o modelo que primava pela centralização no plano da decisão judicial, pela intervenção limitada à execução de ações de competência dos Estados e da União. 

(*) Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia, Professora da Universidade Católica do Salvador, Juíza de Direito aposentada, Consultora na área de Direito da Criança e do Adolescente.

O movimento democrático anterior à Constituição Federal de 1988 (CF) discutiu e ampliou a defesa dos direitos e garantias individuais. Os direitos sociais constituíram uma bandeira de tal magnitude que foram assimilados no texto da nova Carta.  A necessidade de descentralização administrativa e a compreensão sobre a relevância da modernização e da integração do sistema administrativo do país conferiram ao município o status de ente constitutivo da República Federativa do Brasil nos termos do art. 1º da nova Carta. A mobilização dos setores, alijados por tantos anos da participação política, consagrou a forma de organização e de gestão de políticas públicas na área de assistência social: a da descentralização político-administrativa e da participação direta da sociedade através das suas entidades representativas, conforme art. 204 da CF. A década de oitenta assistiu, portanto, ao movimento do debate pela democracia, pelo direito à saúde, na defesa dos interesses do segmento populacional infanto-juvenil. Um histórico movimento nacional congregou, em organização participativa, meninos e meninas de rua, convocando, durante a fase pré-constitucional, diversificados setores da sociedade – religiosos, professores, profissionais de saúde, empresários, políticos, donas de casa, entre outros – para promover a inclusão, no texto legal que então se redigia, daqueles que eram, na verdade, os princípios estruturadores da Convenção das Nações Unidas ainda em discussão: interesse superior da criança e do adolescente, não discriminação e efetividade dos seus direitos.

O Brasil adotou, a partir do artigo 227 da nova Constituição de 1988, a Doutrina Jurídica de Proteção Integral ao segmento infanto-juvenil: um avanço no âmbito da Teoria dos Direitos Fundamentais cuja referência legal é a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948. Assim, a Doutrina das Nações Unidas para a Proteção dos Direitos da infância e da adolescência, consubstanciada pelos documentos internacionais básicos – Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da criança, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (regras de Beijing), Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil e Regas Mínimas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade – foi assimilada no ordenamento jurídico nacional. Este processo consolidou o reconhecimento da criança e do jovem como sujeitos de direito, considerando que a todo direito deste segmento corresponde o dever das gerações adultas, representadas pela família, a sociedade e o Estado. O mandato da CNUDC para estes três entes co-responsáveis compreende tanto a promoção de um conjunto de direitos fundamentais da população infanto-juvenil quanto a sua defesa contra um conjunto de situações de risco pessoal e social ou para circunstâncias especialmente difíceis. O dispositivo 227 da CF constituiu uma síntese nacional do conteúdo da Convenção configurando, assim, o conjunto de direitos fundamentais a ser promovido pelas gerações adultas em três áreas básicas: o Direito à Sobrevivência (vida, saúde, alimentação); o Direito ao Desenvolvimento Pessoal e Social (educação, cultura, lazer e profissionalização) e, por último, o Direito à Integridade Física, Psicológica e Moral (dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária).

Foi com o advento da legislação infraconstitucional, a Lei no. 8069/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que a perspectiva da exigibilidade do direito encontrou, ao longo dos seus 267 artigos, mecanismos objetivos. Assim, o respeito à prioridade absoluta para este grupo populacional de 0 a 18 anos incompletos considerou o fato da criança e do adolescente serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, que não têm condições de conhecer suficientemente seus direitos nem tampouco dispõem de condições para suprir, por si mesmos, suas necessidades básicas, embora sejam portadores, enquanto seres humanos, de um valor intrínseco e de um valor projetivo na sua dimensão onto-genética.

Para a implementação da Doutrina da Proteção Integral o Estatuto prevê um conjunto articulado de ações por parte do Estado e da sociedade. Estas ações podem ser divididas em quatro grandes linhas: a) Políticas Sociais Básicas, que, na perspectiva da universalidade, da continuidade e da gratuidade, implicam na garantia dos direitos sociais para todos como dever do Estado; b) Políticas de Assistência Social, previstas para os que se encontram em estado de necessidade temporária ou permanente; c) Políticas de Proteção Especial, para quem se encontra violado ou ameaçado de violação em sua integridade física, psicológica e moral; d) Políticas de Garantia de Direitos, para as situações nas quais a criança ou o adolescente se encontra envolvido num conflito de natureza jurídica, sendo necessário, para a sua proteção integral, o acionamento das políticas de direito e do órgão do Ministério Público, com observância do devido processo legal.

A implementação dos programas e ações em cada uma dessas quatro linhas de ação da política de atendimento é regida por um conjunto de seis diretrizes básicas, contidas no artigo 88 do ECA. O perfil dessa política de atendimento observa as seguintes diretrizes expressas na própria lei: municipalização do atendimento; criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais; criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa; manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente; integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade.

Nas diretrizes elencadas estão presentes os princípios da política de atendimento do ECA que, conforme COSTA (2002), podem ser definidos como: Princípio da Descentralização: municipalização do atendimento; Princípio da Participação: relativo à criação de Conselhos; Princípio da Focalização: relativo à criação e manutenção de programas específicos; Princípio da Sustentação: relativo à manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais; Princípio da Integração Operacional: que diz respeito à atuação convergente e intercomplementar dos órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social nas ações para atendimento ao adolescente em conflito com a lei; Princípio da Mobilização: corresponde ao desenvolvimento de estratégias de comunicação com objetivo de exortar e articular os diversos segmentos da sociedade na promoção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil.

Quanto ao adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional, portanto, o Brasil assimilou na sua lei especial para o segmento juvenil os seguintes princípios que deverão ser observados nas Políticas de Garantia de Direitos de forma atenta ao conjunto normativo internacional: i) o Princípio da Humanidade, conforme arts. 15, 16.1 e 17, do ECA e em consonância ao art. 37 da Convenção e ao art. 1, 1.4 das Regras de Beijing; ii) o Princípio  da Legalidade, nos arts. 106 a 110 do  ECA, conforme arts. 37, inc. b e 40, inc. 2,a da Convenção e arts. 2,2.2b e 17,17.1.b das Regras de Beijing; iii) o Princípio da Jurisdicionalidade no art.111 do ECA segundo o art. 37, inc.d, art.40, inc. 2, III, 2-3b da Convenção e art. 14 das Regras de Beijing; iv) o Princípio do Contraditório, no arts. 110 a 111 do  ECA e em observância aos dispositivos art. 40, inc.2. b, II, III, IV e VI da Convenção e art. 7, inc.7.1 das Regras de Beijing; v) o Princípio da Inviolabilidade da Defesa, inscrito no art. 111, inc.II,  124 inc. III e 206 do ECA de acordo com o art.37, inc. d e art. 40, inc.3 da Convenção e art. 7, 7.1 combinado com art. 15, inc. 15.1 das Regras de Beijing; vi) o Princípio da Impugnação, constante nos arts 198 e 137, observada a gratuidade no art. 198, inc.I, em consonância com art 37, inc. d e art. 40, inc. 2.b.V da Convenção e art. 17, 17-4 das Regras de Beijing; vii) o Princípio da Legalidade do Procedimento consubstanciado no art.110 do ECA e de acordo com o art. 40, inc.2.b.III da Convenção e art. 17, 17.4 das Regras de Beijing e  o Princípio de  Publicidade do Processo no art. 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente, previsto no art. 40, inc. 2.b, VII da Convenção e no art.8, 8.1  e 8.2 das Regras de Beijing.

Apesar do arcabouço normativo sólido, a dinâmica de assimilação concreta dos princípios pelos operadores jurídicos e pelos profissionais que atendem os adolescentes autores de ato infracional no Brasil ainda é muito complexa e enfrenta sérios desafios. Em verdade, a superação do paradigma da Situação Irregular implica em vontade política dos gestores, compromisso ético e qualificação técnica especializada dos co-atores do sistema de garantia. A complexidade decorre de vários fatores entre os quais destaca-se a necessidade de formação específica dos profissionais do mundo jurídico na área da infância e da juventude para deflagrar as mudanças nas respectivas instituições. Esta formação deveria se dar com maior ênfase desde os cursos de graduação em Direito, de Serviço Social, de Sociologia, de Medicina, entre outros. No entanto, poucas são as universidades no Brasil que oferecem, de forma obrigatória nos currículos jurídicos, as matérias Teoria dos Direitos Humanos e Direito da Criança e do Adolescente. Ademais, persiste a necessidade de inadiável definição nacional de parâmetros de qualificação profissional para o atendimento sócio-educativo para os adolescentes em conflito com a lei. Uma uniformização concreta dos serviços de atendimento para cada uma das medidas (advertência, reparação do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação), sempre em observância dos princípios reitores supra aludidos, permitirá conferir a dimensão da prevalência pedagógica às respectivas medidas, superando as iniciativas esparsas, o improviso, o esforço que se dispersa e que não é sistematizado, assim como permitirá dimensionar, contínua e zelosamente, a assimilação, pelo educando, da sua capacidade de auto-conhecimento, percepção da natureza do ato praticado, interação social e elaboração de um projeto de vida.

A Constituição Federal de 1988 conferiu uma significativa ampliação de funções e de poderes ao Ministério Público. Para a área específica do jovem autor de ato infracional, sobretudo, pode o Promotor de Justiça[1]  conceder a remissão. A remissão corresponde a um princípio expresso na Convenção, o da desjudicialização, a partir do qual o conflito – relativo à conduta do adolescente que tenha praticado ato infracional – é “perdoado” posto que remetido a outras esferas de resolução que não a da própria Justiça. Estas esferas ou planos diferenciados de intervenção seriam, conforme Lima & Alves (2003) os de caráter socioeducativo e/ou de proteção específica, isto é, na área educacional, de saúde ou outra, conforme a natureza do ato infracional praticado e o contexto de vida do jovem, sobretudo quanto às condições da sua família de lhe dar suporte e acompanhamento. A importância deste novo procedimento inaugurado com a lei especial de 1990 corresponde à superação da centralização, exclusivamente judicial, de caráter monocrático e discricionário, que, por muitas décadas, configurou o perfil do paradigma da situação irregular (GARCÍA MÉNDEZ, 1998). Assim, conferindo ao plano social a possibilidade efetiva e legalmente prevista de assumir aquilo que tem origem também social,  desloca do poder-dever do magistrado matéria de natureza eminentemente de interesse da família, da sociedade e do Estado. No entanto, apesar do avanço, a significativa maioria dos municípios brasileiros ainda não dispõe de programas municipais de medidas socioeducativas de meio aberto (prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida). Esta circunstância é extremamente grave uma vez que compromete o processo de assimilação, pelo jovem, do caráter do ato praticado e limita a sua integração em atividades lúdicas-educacionais-sociais que venham a lhe acenar outras perspectivas de atuação protagônica.

Afirmam Lima & Alves (2003) que é “no exame sobre a possibilidade da remissão que o operador jurídico, com a participação da  equipe técnica, prevista no art. 150 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pode dimensionar a singularidade e a oportunidade para convidar a família à revisão das suas condições de natureza agregadora, educadora e socializadora, discernindo seu potencial e seu limite. Assim, junto ao jovem que pratica ato infracional e defronte dos elementos constantes no Boletim de Ocorrência (BO), o operador do direito tem a chance de ponderar com a família a sua capacidade de compartilhar a liberdade do adolescente, isto é, a sua capacidade de propulsar novas escolhas.”

O avanço constitucional de 1988, seguido pela legislação infraconstitucional, repercutiu, entre outras áreas, sobre a posição dos pais quanto aos seus filhos e familiares. Entretanto ainda não tem sido articulada de forma transversal as políticas públicas de família, eixo de convergência elementar para a promoção de educação em valores e para a cultura da paz, condição essencial para a formação de jovens com projetos de vida.

A observância da garantia do direito à saúde e do direito à educação para adolescentes, sobretudo, há de ser melhor articulada no Brasil para que haja efetiva medida de caráter promocional, ampla, contínua, gratuita, com ênfase no quanto de novo e promissor cada jovem traz em si.

 

 

 

Referências Bibliográficas:

COSTA, ACG. Regimes de Atendimento e Apoio Sócio-Familiar. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 2003.

LIMA, I.M.S.O.; ALVES, V.S. Proteção Integral ao Adolescente e Apoio à Família: análise a Partir dos atos infracionais. Anais do IV Congresso do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: 2003 (no prelo)

GARCÍA MÉNDEZ, E. Infância e cidadania na América Latina. São Paulo: Hucitec/Instituto Ayrton Senna, 1998

 

 

 

 

 



[1] Ministério Público é a instituição correspondente, na América Latina, à Fiscalía,.