ALÉM DO ATO INFRACIONAL:
ADOLESCÊNCIA, DIREITO E INTERDISCIPLINARIDADE [1]
Um estudo sobre o adolescente em
conflito com a lei
O conjunto normativo da
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDCA) compromete, no
plano jurídico interno, todos os países signatários, visando gerar resultados
tangíveis e intangíveis para o segmento populacional infanto-juvenil. A
repercussão deste compromisso, tanto na área do Direito Internacional Público
quanto no plano interno de cada Estado-Nação, implica em esforços conjugados
capazes de congregar, nos planos gerais de ação, as diversas dimensões dos
direitos humanos da infância e da adolescência. A observância dos direitos humanos da população
infanto-juvenil implica tanto na compreensão da indivisibilidade, da
interdependência e do inter-relacionamento (PECES-BARBA, 1988; BUERGHENTAL,
1989; BIDART CAMPOS, 1991; VAN BUEREN, 1999; PIOVESAN, 1996; ALEXY, 2001)
destes direitos por cada Estado-Nação, quanto no seu imperativo cumprimento. A garantia dos direitos humanos implica e
exige, além da afirmação normativa, a definição de políticas públicas
específicas capazes de superar um discurso retórico, promovendo, assim, uma
atuação articulada e interdisciplinar de diferentes atores sociais (BIDART CAMPOS, 1991; ANNAS,
1999; MANN et al., 1999; MARKS, 1999; VAN BUEREN, 1999; LIMA, 2002).
No esforço para analisar,
planejar, agir e controlar a situação específica de cada aspecto relativo a
este segmento populacional, cada país deve manter indicadores sociais e dados
reais sobre as diferentes características que envolvem a realidade
infanto-juvenil. Dentre as informações necessárias e capazes de obrigar os Estados Nações a empreenderem ações
concretas com resultados mensuráveis sobre o grau de avanço nas condições de
proteção dos jovens, há especial relevância aqueles
dados relativos aos adolescentes em conflito com a lei.
É reconhecida a necessidade, tanto no Brasil quanto na América Latina,
de estudos voltados para conhecimento mais aprofundado e contínuo da realidade
dos adolescentes autores de atos infracionais. Os profissionais que atuam junto
a esta parcela da população juvenil deparam-se com um duplo desafio: por um
lado, o desafio de analisar as condições que agridem os seus direitos mais
fundamentais, representando risco e fragilizando o potencial de proteção, e,
por outro, como sinaliza o UNICEF (2003), o desafio de apoiar os adolescentes
“em suas capacidades de sujeito transformador e de promotor de mudanças
construtivas” (p.7). Nesse contexto situa-se a complexa problemática do
adolescente autor de ato infracional (LIBERATI, 2002) a exigir estudos que
sejam capazes de enfrentar a interdisciplinaridade dos temas (VERONESE &
RODRIGUES, 2001).
O presente estudo, de natureza interdisciplinar, expressa a contemporaneidade
do Direito (SANTOS, 1998) e a necessária interação dos temas jurídicos com os
das áreas sociais (CALMON de PASSOS, 1999) e tem como objetivo a análise das características dos adolescentes autores
de atos infracionais na cidade do Salvador e de suas famílias a partir dos
processos disponíveis na Segunda Vara da Infância e da Juventude, no período
entre 1996 e 2002.
Direito do
adolescente em conflito com a lei e devido processo legal
As políticas de
Direitos Humanos se operam mediante dados reais e a promoção de uma justiça
célere, da eficácia na apuração do ato infracional e o diagnóstico da realidade
do ato infracional em uma determinada região fortalece o Poder Judiciário
subsidiando as ações governamentais previstas no Programa Nacional de Direitos
Humanos: acesso à justiça, garantia do princípio da defesa, combate à
impunidade, formação de pessoal especializado na área do judiciário.
Esta pesquisa realizada confere, ainda, a possibilidade de examinar o
devido processo legal (due process of law) em face do Direito do
Adolescente (LIMA, DEIRÓ & RIBEIRO, 2003). Para tanto, o seu tema geral -
Direitos Humanos e Direito do Adolescente – se plasma ao dos princípios
jurídicos e conferem elementos a serem investigados. Considerando as
características de vulnerabilidade e de especificidade deste segmento
populacional – adolescente em conflito com a lei – a legislação
infraconstitucional brasileira, através do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) operou profunda inovação no
ordenamento jurídico pátrio seguindo as diretrizes que, consolidadas na
Constituição Federal de 1988, se projetaram na órbita de outros ramos do Direito - Civil, Penal, Trabalhista,
Processual - e na própria tutela dos interesses difusos relativos à população
infanto-juvenil através da Lei da Ação Civil Pública. A normativa nacional,
portanto, no art. 15 da Lei no. 8069/90
(ECA) e no art. 227 da Constituição Federal, atribui às crianças e aos
adolescentes a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento e de sujeitos
dos direitos civis, humanos e sociais garantidos no texto constitucional e nas
leis. Este reconhecimento legal é o aspecto diferenciador do paradigma que
antecedeu à CDCA. No modelo anterior, denominado paradigma da situação
irregular, vigente no país até 1990, a discriminação, com base na
compreensão menorista da criança, apartava e excluía os menores de origem
pobre, os abandonados e os autores de ato infracional. Assim o fazendo, não
respeitava o princípio da igualdade. Ademais, considerando como irregular
a situação da criança e do adolescente oriundos de famílias sem recursos
financeiros, circunstancialmente desestruturadas ou sem condições de manter
seus filhos, imprimia a judicialização.
Esta judicialização se caracterizava pela absorção, através do poder judicial,
de problemas de natureza eminentemente social, relativos à própria atuação do
Estado no desempenho das suas funções executivas, administrativas,
econômico-sociais e no exercício das políticas públicas. Com fundamentação e
práticas discriminatórias o paradigma da situação irregular segregava
os menores como os carentes e os que se achavam em situação de risco.
Esta visão, aceita até o século passado, se articulava com a discricionariedade
do órgão judicial que, até 1988, tinha o poder ilimitado para reconhecer ou
conferir a declaração de abandonado ou de “em perigo social” para qualquer
criança e/ ou adolescente. Em relação ao adolescente em conflito com a lei o
paradigma da situação irregular mantinha a privação da liberdade como uma
extensão do controle social, não respeitando, portanto, entre outros, o
princípio do contraditório. Considerar os princípios do Estado Democrático de
Direito implica em estabelecer as relações entre a pauta dos Direitos Humanos e
do Direito do Adolescente. Segundo Canotilho & Moreira (1991) os princípios
do Estado Democrático de Direito implicam, entre outros, a segurança e a
certeza jurídicas. Assim, a transformação normativa de 1988 e de 1990, com
a superação do paradigma da situação
irregular pelo paradigma da proteção integral, confere elementos que podem ser
analisados a partir do eixo do devido processo legal na estrutura do Estado
Democrático de Direito que tem como base as garantias jurídicas da própria
Carta Constitucional. Esta investigação
também permite analisar, entre outros aspectos, como o princípio da proteção
integral em relação aos adolescentes em conflito com a lei vem observando o devido processo legal. A
processualística brasileira considera o devido processo legal como a garantia
fundamental mais importante do direito processual pátrio, dentre aqueles
previstos no art. 5º da Constituição Federal. O princípio do devido processo
legal, difundido nas Constituições de quase todos os países democráticos
(VALENTE, 2002), possui duas vertentes: uma substancial e outra processual. O
devido processo legal substancial consiste na proteção do direito à vida, à
liberdade e à propriedade dos cidadãos, assegurando à sociedade a existência de
leis razoáveis, que compilam seus anseios coletivos (CÂMARA, 2003). No que tange
ao aspecto processual, o devido processo legal consubstancia a garantia de que
as partes no processo - quer judicial, quer administrativo – terão, segundo
Moraes (2002), “paridade total de
condições” e “plenitude de defesa”. Desta forma, tem-se como corolários do
princípio do devido processo legal os
princípios da igualdade, da ampla defesa e do contraditório. Estes princípios
se mantêm e se nutrem dentro de um Estado de Direito pois o respeito a cada um
deles não se observa em regime
totalitário. Esta relação da democracia com o devido processo legal também se
integra aos interesses do adolescente em conflito com a lei. O art. 110 do ECA
prevê explicitamente a garantia do devido processo legal. O adolescente só
poderá sofrer a aplicação das medidas
socioeducativas previstas no art. 112 da Lei nº 8.069/90 após a
observância do disciplinado nos arts. 184 e 186 a 190 do ECA.
Os
princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade formam o tripé que
sustenta o principio maior do devido processo legal. Cotejando cada um destes
princípios com as normas atinentes à apuração do ato infracional (art.103, ECA)
cometido por adolescentes, tem-se que o primeiro, da ampla defesa, garante ao
adolescente a possibilidade de igual
direito de defesa em face de todo ato de acusação, ou seja, direito de opor-se
ou manifestar-se, apresentando a sua versão dos fatos apurados. Ao jovem é
conferida a possibilidade de trazer ao processo todos os elementos que
contribuam para o esclarecimento da verdade dos fatos, corresponde ao principio
que concede ao indivíduo todas as oportunidades para garantir o
respeito ao seu direito à liberdade,
assegurando-se, no caso concreto, a indisponibilidade da citação, a nomeação de
defensores dativos e a notificação para os atos processuais, conforme preconiza
o art. 111, I, III e IV do ECA. Todo este
acervo normativo deve observar o princípio de juridiscionalidade previsto no
art 37, inc. d e art 40, inc. 2 III-2-3 b da Convenção
das Nações Unidas sobre Direitos da Criança e nos arts. 14,I e 14.1 das Regras
de Beijing, segundo os quais há determinados requisitos essenciais da jurisdição. Assim, as questões
relativas ao jovem em conflito com a lei não constituem tema que possa vir a ser tratado sem os próprios limites
legais. Incide, nas decisões relativas à apreciação do ato infracional nas
Ações Socioeducativas Públicas, assim como na aplicação de medidas
socioeducativas, o próprio princípio de
impugnação previsto tanto no art. 37, inc. d e art. 40, inc. 2.b.V da CDCA quanto no art. 7, 7.1 das Regras de Beijing e, igualmente, nos
arts. 198 e 137 do ECA, conferindo o
direito de recurso a um órgão superior.
A
Convenção das Nações Unidades sobre
Direitos da Criança (CDCA), assimilando os princípios dos Direitos Humanos,
considera o princípio do contraditório no art. 40, Inc. 2.b, II, III, IV e VI , assim como consta nas Regras de Beijing, no seu art. 7.1. Nestes documentos especifica-se a necessidade de
definição dos papéis processuais
(juiz, defensor, ministério público) como uma etapa na própria garantia do
devido processo legal. A prévia configuração dos papéis dos diferentes
operadores do direito implica, para os adolescentes autores de ato infracional,
na essencial garantia do princípio de
inviolabilidade da defesa. Este princípio se fundamenta no art. 37, inc. d e no art. 40, inc.3 da Convenção, no art. 7, 7.1 , art. 15 e 15.1 das Regras de Beijing,
assim como nos art. 111, III, 124, inc. III e art. 206 do ECA.
Articulam-se, portanto, todos os
princípios configurando uma malha de sustentação do devido processo
legal. Desta forma, o princípio da
legalidade, preconizado no art. 37, inc. b e Art. 40, inc. 2.a da Convenção,
também está previsto no art. 2, 2.2 b. e no art. 17, 17. 1.b das Regras de Beijing, como nos
arts. 110 e 106 da Lei no. 8069/90, proibindo que haja qualquer reconhecimento de delito ou de
pena sem sua prévia definição legal.
Em
face da garantia da igualdade na relação processual, prevista no art. 227, §3º,
IV e art. 111, II do Estatuto da Criança e do Adolescente, o adolescente tem o
direito de “confrontar-se com vítimas e
testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa”.
O
exercício da ampla defesa nos procedimentos relativos aos adolescentes autores
de ato infracional apenas se concretiza com o respeito à garantia da defesa
técnica por advogado. A própria Constituição Federal, em seu art. 227, §3º, IV
preconiza que o direito à proteção integral especial da criança e do
adolescente se dará através de defesa técnica especializada.
De outro lado, o adolescente somente gozará plenamente do direito à defesa se lhe for assegurada a assistência judiciária gratuita, nas hipóteses em que não puder arcar com os honorários advocatícios e as custas judiciais sem prejuízo de sua subsistência ou de sua família.
Tanto a Constituição Federal (art. 5º, LXXIV) quanto a legislação infraconstitucional (Lei nº 1.060/50) cuidam de garantir o pleno acesso dos hipossuficientes econômicos aos órgãos do Poder Judiciário. Ademais, no que tange ao adolescente autor de ato infracional, a regra 15.1 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing), de 1985, bem como a alínea “d” do art. 37 da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, estabelecem a garantia da assistência judiciária gratuita.
Em
todo este conjunto principiológico, o princípio da humanidade, que proíbe penas cruéis e degradantes, está relacionado à
responsabilidade social do Estado com o adolescente e na obrigação de
assisti-lo para eficácia do processo
sócio-educativo, conforme o art. 37 inc.
a-c da CDCA e do art. 1, 1.4 das Regras de Beijing.
O paradigma da proteção integral não existe em
abstrato, se estrutura de forma real através da garantia dos direitos humanos
da população infanto-juvenil. Em relação ao adolescente que pratica ato
infracional, especialmente, o respeito ao devido processo legal se configura
como uma via através da qual pode ser investigada a observância dos direitos
humanos e do paradigma atual em face da lacuna relativa a estudos desta
natureza. Assim, examinar o tempo de duração do processo – isto é, do curso da
Ação Socioeducativa Pública – a partir da data do recebimento da Representação
do Adolescente pelo Ministério Público até a data da decisão judicial confere,
para esta investigação, um dado significativo para apreciar o devido processo
legal, e, em termos mais amplos, a observância dos Direitos Humanos em face do
Adolescente em conflito com a lei, conforme Lima, Deiró
& Ribeiro (2003).
Compreendendo a situação do
adolescente em conflito com a lei
Compreendendo a situação do adolescente em conflito com a lei é que se
destaca, neste estudo, ao lado da caracterização do perfil desse adolescente, a
busca por uma compreensão inicial de sua realidade, enfatizando inicialmente um
diagnóstico de sua estrutura familiar.
Considera-se que é na família, enquanto contexto de desenvolvimento
humano, que crianças são gradualmente orientadas para tornar-se adultos,
mediante regras da vida cultural, muitas vezes não escritas. As múltiplas interações
e a constituição de sistemas de relações (diádicos e poliádicos) no espaço da
família envolvem, segundo Schaffer (1984), efeitos de segunda ordem que devem
ser considerados para dar conta da plena complexidade da vida social real. Cada
família mantém, ainda, relações de interdependência com agrupamentos sociais
diversos, sendo contexto privilegiado para a observação de como atuam as fontes
de apoio mais imediatas ao indivíduo, podendo-se pensar, como Costa e Lopez
(1986) e Casas (1998), em múltiplos níveis de apoio social, do formal
(institucionais, profissionais) ao informal (familiares, vizinhos, amigos,
conselheiros religiosos etc.).
Em uma sociedade desigual, como a brasileira, é indispensável levar em
conta que as famílias ocupam espaços diferenciados em sua luta pela
sobrevivência e pela reprodução da vida. E, ao ocupar estes espaços,
estabelecem relações de convivência, conflituosas ou não, trocam experiências,
acumulam saberes, habilidades, hábitos e costumes, reproduzindo concepções e
cultura. A família é, também, o locus
privilegiado para observar o impacto, a natureza e a atuação das redes de apoio
social imediatas ao indivíduo, capazes, em graus diversos, de minimizar os
efeitos de estressores, em diferentes pontos do ciclo de vida (COSTA &
LOPEZ, 1986).
No Brasil urbano, seguindo uma tendência observada mundialmente nos
países industrializados, não se pode falar de famílias sem considerar o
crescente número de mulheres chefes de família nas últimas décadas, condição em
que as crianças passam o maior tempo de suas vidas contando com a mãe como
única responsável (GOLDANI, 1994). O aumento da expectativa de vida ao nascer e
as quedas das taxas de fecundidade e de mortalidade infantil vêm refletindo a
melhoria das condições de vida para a população em geral exigindo, porém,
atenção especial para as relações entre diferentes gerações que passam a
conviver numa mesma família. Para as famílias brasileiras essas questões apenas
se somam àquelas antigas relacionadas aos direitos fundamentais de suas
crianças e adolescentes, cronicamente negligenciados (BASTOS, ALCÂNTARA &
FERREIRA-SANTOS, 2002; CASTRO et al., 2001).
Embora seja
objeto de muita discussão o diagnóstico de uma crise profunda na família, à
qual são atribuídas, com maior ou menor propriedade, conseqüências sociais de
variada extensão e gravidade, é amplamente reconhecido que a família representa
o eixo de organização do espaço social imediato dos indivíduos, facilitando seu
ajuste às dificuldades da vida (WOORTMANN, 1987; PERROT, 1993). No âmbito do
desenvolvimento humano, a família ocupa lugar privilegiado quando se trata de
discutir risco e proteção à saúde, em várias de suas dimensões.
A discussão de fatores e mecanismos de risco e proteção, no curso do
desenvolvimento humano, já supera uma compreensão linear: proteção não é
equivalente a experiências positivas. No campo da psicopatologia do
desenvolvimento, por exemplo, há indicações, a partir da investigação de
determinantes psicossociais, de que a proteção seria construída ao longo da
superação bem sucedida de acontecimentos prévios, e não na esquiva do estresse
(RUTTER, 1986). A constatação empírica de que o modo mais ativo de
enfrentamento individual frente a estressores ambientais podem converter
ameaças em desafios representa, sem dúvida, um encorajamento a programas
baseados em participação comunitária. Auto-estima e competência social parecem
ser importantes variáveis nesta conexão, assim como boas experiências na
escola, realizações resultantes de assumir responsabilidades, e a presença de
um confidente de apoio - profissionais de saúde podem e devem integrar a rede
de suporte social dos indivíduos. A ênfase no conceito de competência
afasta-se, ainda, de um foco exclusivo em sintomas, transtornos, déficits,
risco e vulnerabilidade para imprimir, pelo menos, atenção equivalente a
conceitos como eficácia, resistência e fatores de proteção, e ao problema de
continuidade ou mudança em padrões de competência (MASTEN, COATSWORTH, NEEMANN,
GEST, TELLEGEN & GARMEZY, 1995).
Na defesa ativa do bem-estar infanto-juvenil, prioridade em qualquer
esforço de prevenção, torna-se mais importante o deslocamento da perspectiva da
doença para a saúde, exigindo uma ênfase crescente à investigação de padrões de
vulnerabilidade e resistência frente a situações que configuram adversidade:
pobreza, status minoritário, violência, conflitos intra-familiares e sociais,
incluindo os conflitos com a lei (SAMEROFF & SEIFER, 1983; RUTTER, 1986;
LUTHAR & ZIGLER, 1991).
A trajetória de vida das famílias, por sua vez, acarreta diferentes
situações e momentos de risco (COWAN, 1991; ELDER Jr., 1991). O momento em que
estes eventos críticos se apresentam ao adolescente pode ser decisivo para
direcionar uma trajetória de desenvolvimento. Moffit & Caspi (2000), ao analisar
preditores e etiologia de comportamento anti-social – seja aquele que, surgindo
desde a infância, persiste ao longo da vida, seja aquele circunscrito à etapa
da adolescência –, identifica uma série de eventos relevantes. Esses eventos
incluem fatores parentais de risco,
riscos neurocognitivos, riscos comportamentais e associados a
temperamento, rejeição pelos colegas e delinqüência de colegas. Estudo
realizado por esses autores mostrou que os fatores associados à forma mais
grave de comportamento delinqüente (o persistente desde a infância) foram
estilos inadequados de educação, problemas cognitivos ou comportamentais e
temperamento. Os resultados dos autores indicam que é necessário traçar,
através de análises específicas, os determinantes de envolvimento em
comportamento anti-social com início na adolescência, identificando as
diferenças entre adolescentes do sexo masculino e feminino.
Os efeitos em relação aos adolescentes das condições sócio-econômicas,
associados aos da urbanização, são revistos por Marsella (1998), que evidencia
o baixo consenso presente na literatura quanto a uma possível relação causal
(intensamente investigada) entre urbanização, saúde mental e desvio social. Os
estudos incluídos nessa revisão abrangem variáveis situadas em diversos níveis:
do biopsicossocial ao macroambiental. Os preditores encontrados para efeitos
como delinqüência e abuso de substâncias situam-se no nível microssocial
(desintegração familiar, residência em bairros miseráveis, suporte social
precário) e psicossocial (conflito ou confusão de valores, desamparo e
abandono, medo e insegurança).
Para compreender o impacto das situações é necessário que os
pesquisadores promovam continuadamente uma articulação entre medidas de
processos proximais (relacionadas às
experiências específicas encontradas por uma criança em uma dada classe social)
e distais (status sócio-econômicos e
outros índices demográficos) no curso do desenvolvimento (BRONFENBRENNER &
CECI, 1994).
O amplo diagnóstico sobre violência juvenil nas Américas, elaborado por
McAlister (1998) sob demanda da OPAS, da Agência Sueca para o Desenvolvimento
Internacional e da Fundação Kellogg, além de discutir diretrizes para a
prevenção da violência e promoção da paz, apresenta um mapa dessa violência:
formas, locais de ocorrência, o jovem enquanto alvo ou autor do ato violento,
determinantes sociais e influência específica dos meios de comunicação. A
abordagem aí adotada ancora-se sobre um modelo teórico que enfatiza os
processos psicossociais que configuram a violência, seguindo a tendência
contemporânea, encorajando análises de interações específicas, enfatizando cada
vez mais o que acontece nos níveis mais proximais ao indivíduo – família,
vizinhança, pares de idade. Esse modelo incorpora: (1) aspectos contextuais que
facilitam ou restringem a violência – realidade física, social e simbólica;
família; pares; escola; comunidade; meios de comunicação; (2) conflito:
situações e eventos; oportunidades de educação e comunicação; (3) variáveis da
pessoa: interpretações, motivação, reações emocionais, normas e atitudes,
habilidades de auto-eficácia e (4) conseqüências que retroalimentam o modelo.
No Brasil, estudos dessa natureza ainda se fazem necessários. A
realidade do adolescente brasileiro e o contexto em que ele está imerso ainda
não foi estudada de forma profunda. Estudos abrangentes, como a análise da
situação específica da adolescência promovida em 2003 pelo UNICEF, assim como
estudos que analisam o perfil e representações sociais de violência e cidadania
em ampla amostra de jovens do Rio de Janeiro (MINAYO et al.. 1999) e estudos
mais específicos, analisando variáveis familiares ou psicológicas , como no estudo de Menin (2000), embora
relevantes, não esgotam a complexidade do tema.
O Relatório apresentado pelo UNICEF (2003) sobre a adolescência
brasileira apresenta a situação do adolescente autor de atos infracionais como
um desafio: o entendimento disponível de sua prática oscila entre duas
percepções extremas, uma atribuindo total responsabilidade ao adolescente,
outra às condições sociais em que ele está inserido. No primeiro pólo, a ênfase
recai sobre “a periculosidade do jovem, sua participação no aumento da
violência e a necessidade do agravamento de penas a eles aplicadas”. No
segundo, é possível que proliferem explicações pouco específicas, muito
genéricas, desconhecendo a realidade específica do jovem.
A presente investigação partiu
de dois pontos. O primeiro, relativo à constatação da ausência, no
Brasil e, particularmente na Região Nordeste, de um sistema de registro de
informações capaz de dimensionar a amplitude do tema da prática de atos
infracionais por adolescentes. O segundo ponto relativo às percepções
distorcidas – sobretudo pela mídia – decorrente de análises equivocadas sobre a
prática do ato infracional do adolescente no Brasil.
Ato Infracional na cidade do
Salvador
A perspectiva de investigar, nas Ações Socioeducativas Públicas na
Segunda Vara da Infância e da Juventude, em Salvador, capital do Estado da
Bahia, variáveis proximais e distais que podem caracterizar, de modo inédito e
abrangente, o contexto familiar de adolescentes autores de atos infracionais
configura-se oportunidade para uma aproximação desta realidade. Pressupõe-se
que tais adolescentes situam-se em níveis altos em um continuum de exposição
individual ao risco psicossocial. A indicação de variáveis familiares
associadas à ocorrência de atos infracionais e a uma rotação na trajetória de
desenvolvimento que inclui o adolescente no limiar da marginalidade e da
exclusão pode representar valiosa contribuição à atuação dos operadores do
direito que militam no campo da proteção à infância e juventude, nas Varas de
Família e na área das Ações Civis Públicas relativas aos direitos difusos e/ou
coletivos nos quais haja interesse deste segmento populacional.
A cidade do Salvador, com aproximadamente dois milhões de habitantes,
reflete, como toda a Região Nordeste do Brasil, em que se insere, uma história
de clientelismo e de coronelismo. A mobilização política, social e cultural
contra a discriminação e contra as diversas formas de preconceito têm
enfrentado, historicamente, a rigidez
de um modelo burocrático que ainda resiste ao processo conquistado na
Constituição Federal de 1988. A
dinâmica da democracia participativa mediante a implementação dos Conselhos
Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente assim como dos Conselhos
Tutelares e das outras novas institucionalidades democráticas tem sido uma meta
para todos os operadores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
Nesta região do país ainda é limitada a produção teórica que contemple
abordagens interdisciplinares
entre as atividades dos operadores jurídicos e dos demais campos de saber.
O presente estudo
integra, de forma pioneira na Região Nordeste, uma equipe de pesquisadores de
diferentes áreas na investigação de tema que interessa à agenda contemporânea.
METODOLOGIA
O
estudo, de natureza descritiva, realizou-se a partir de uma análise documental.
Para tanto, utilizaram-se as Ações Socioeducativas Públicas do acervo da
Segunda Vara da Infância e Juventude da comarca de Salvador, Bahia, referentes
ao período de 1996 a 2002, como fonte de dados.
As
Ações Socioeducativas Públicas correspondem aos processos para apuração de atos
infracionais praticados por adolescentes. Estes cadernos processuais contêm
diversos elementos documentais: o Boletim de Ocorrência, lavrado na
Delegacia Especializada em adolescente autor de ato infracional após a
apreensão do adolescente; o Relatório Psicossocial, elaborado por profissionais
de psicologia e/ou serviço social que integram a equipe do Serviço de
Atendimento Psicossocial da Fundação da Criança e do Adolescente (FUNDAC); a Representação
do Ministério Público e o despacho de recebimento da representação; mais o
conjunto das peças do curso processual, concluindo os autos mediante a sentença
prolatada.
A
definição do período do estudo justifica-se pela extensão do acervo
institucional. Os documentos anteriores ao ano de 1996 já não se encontram
disponíveis na Segunda Vara da Infância e da Juventude.
Os
procedimentos metodológicos serão apresentados segundo quatro fases: a)
Construção do instrumento; b) Amostragem; c) Aplicação e conferência do
instrumento, d) Construção do banco de dados.
Construção do instrumento
A
construção do instrumento foi precedida pela definição de variáveis de caráter
interdisciplinar: legais, sócio-demográficas, familiares e relativas à natureza
do ato infracional. Para esta definição, partiu-se da leitura de processos de
Ação Socioeducativa e da matriz de dados construída em investigação anterior
com Termos de Remissão do ano de 2002, também procedentes do acervo da Segunda
Vara da Infância e Juventude (LIMA & ALVES, 2003; ALVES & LIMA, 2003a;
ALVES & LIMA, 2003b).
O
instrumento foi construído especialmente para a coleta dos dados, com seu
preenchimento sendo realizado mediante a leitura do processo em sua íntegra.
Trata-se de um instrumento estruturado, composto por 87 itens previamente
definidos, dispondo de um campo para as observações importantes que
eventualmente não tivessem sido contempladas pelos itens.
Antes
de sua utilização na coleta dos dados, o instrumento foi extensamente revisado
e testado entre estudantes de graduação de direito e profissionais das áreas de
Serviço Social, Psicologia e Pedagogia.
Amostragem
A
amostragem consiste numa técnica de coleta de dados na qual uma parcela
estatisticamente representativa da população estudada é tomada para a análise.
Nesta perspectiva, os dados obtidos a partir da amostra traduzem a realidade da
população, dentro de uma margem de erro conhecida. Embora a literatura admita
uma margem de erro aceitável de 6%, decidiu-se, no presente estudo, adotar uma
margem de erro de 4% para o cálculo do tamanho amostral, utilizando-se para
isso o quadro elaborado por Richardson (1986).
A
população do estudo correspondeu aos processos referentes a adolescentes
autores de ato infracional, representados pelo Ministério Público, nos termos
do preconizado no art. 182, caput, do ECA,
no município de Salvador, entre o período de 1996 e 2002. A
representação do adolescente, quando regularmente recebida pelo Juiz
competente, implica na formalização de um processo específico – a Ação
Socioeducativa Pública.
Identificaram-se
no acervo da Segunda Vara da Infância e Juventude 4557
Ações Socioeducativas Públicas relativas ao período investigado. A
identificação dos processos realizou-se mediante consulta aos livros Tombo da Instituição, ou seja, os livros
que registram todas as Representações oferecidas pelo órgão do Ministério
Púbico. A estes processos foram atribuídos números para a realização do sorteio
amostral. A composição da amostra foi proporcional ao número de processos por
ano.
O
processo de Ação Socioeducativa foi tomado como a unidade de análise do estudo e
para o sorteio utilizou-se o programa SPSS[2].
A Tabela 1 apresenta o número de processos identificados por ano entre 1996 e
2002 e a composição da amostra.
TABELA 1. Número de processos (Ações
Socioeducativas Públicas) identificados no período 1996-2002 na Segunda Vara da
Infância e da Juventude e composição da amostra
Ano |
Total de processos |
Total de Processos selecionados |
Total de Adolescentes |
1996 |
382 |
49 |
55 |
1997 |
487 |
62 |
68 |
1998 |
662 |
84 |
107 |
1999 |
739 |
94 |
97 |
2000 |
940 |
120 |
139 |
2001 |
721 |
92 |
97 |
2002 |
626 |
75 |
88 |
Total |
4557 |
549 |
651 |
A
amostra foi composta por 549 Ações Socioeducativas Públicas, dentre as quais
havia mais de um adolescente representado em um mesmo processo, perfazendo um
total de 651 adolescentes na amostra.
Dentre
os processos sorteados, alguns não foram localizados no acervo da Segunda Vara
da Infância e Juventude no período da coleta de dados. Os processos nos quais o
jovem representado declarou menoridade sendo, contudo, constatada sua
maioridade ao longo do processo, em face do teor do parágrafo único do art. 2o
do ECA, foram excluídos da amostra. Nestas duas circunstâncias os processos
foram substituídos na amostra por outros igualmente sorteados.
Aplicação e
conferência do instrumento
O
instrumento foi aplicado para cada adolescente representado no processo. Assim,
em caso de mais de um adolescente representado no mesmo processo, aplicou-se o
número de instrumentos correspondente aos representados. Os instrumentos foram
numerados de acordo com o ano do processo e o número de adolescentes
envolvidos.
A
aplicação do instrumento era precedida de leitura minuciosa do processo. Todos
os instrumentos aplicados foram sistematicamente submetidos à conferência, que
consistiu na sua revisão, com efetuação de correções necessárias.
Construção do banco
de dados
Para
tratamento e análise dos dados utilizaram-se dois softwares: o Epi Info (versão
6,0) e o SPSS (versão 11,0). O primeiro para a digitação e
confiabilidade (incluindo procedimentos de correção do banco), o segundo para a
análise propriamente dita.
Uma
vez codificados os dados, a digitação foi realizada mediante um procedimento de
entrada dupla, para maior fidedignidade dos registros, ou seja, cada
instrumento foi digitado duas vezes. Com este procedimento ampliou-se a
correção e confiabilidade da digitação. Os dois bancos de dados gerados foram
comparados e as diferenças identificadas entre eles foram corrigidas mediante
consulta aos respectivos instrumentos.
Após
a correção, o banco de dados construído no Epi
Info foi exportado para o programa SSPS,
no qual, a partir de rotinas simples (descriptive
statistics e graphs) destinadas a
caracterizar a amostra e a produzir perfis conforme as variáveis relevantes,
foram realizadas as análises descritivas.
RESULTADOS E
DISCUSSÃO
Nesta seção são descritos, contextualizados e discutidos os dados que
descrevem a amostra de adolescentes representados nas Ações Socioeducativas
junto à Segunda Vara da Infância e da Juventude, em Salvador, considerando-se:
o perfil dos adolescentes, seu contexto familiar, o ato infracional e
ocorrências durante o processo.
Quem são estes adolescentes
Na Tabela 2, a seguir, se encontram caracterizados
os adolescentes em conflito com a lei, que foram representados na 2ª Vara da
Infância e Juventude entre 1996 e 2002. As características do adolescente
reveladas pelos dados evidenciam, como marca predominante, um perfil de
sujeitos socialmente excluídos.
TABELA 2. Características sócio-demográficas dos adolescentes representados nas Ações Socioeducativas Públicas – Segunda Vara da Infância e da Juventude
Com relação à idade do adolescente em conflito com a lei, observa-se que
os adolescentes pertencentes à faixa etária entre 15 e 17 anos envolvem-se mais
freqüentemente em atos infracionais que os adolescentes mais novos, entre 12 e
14 anos. É possível que esse dado
esteja relacionado a uma maior independência
dos adolescentes mais velhos, com concessões maiores da família. Uma outra
hipótese é de que as reincidências, a prática de outros atos infracionais após
um primeiro, incremente o número de adolescentes mais velhos a esta
estatística.
Dentre os adolescentes, 41,5% eram reincidentes, ou seja, contavam com
pelo menos um envolvimento anterior em prática de ato infracional. Para os
adolescentes com menos de 15 anos predominam casos de primeira Representação,
enquanto a reincidência torna-se um evento mais comum após essa idade, dado que
sugere a complexidade do processo de reinserção social do adolescente em
conflito com a lei.
Houve um envolvimento significativamente superior de meninos (84,1%) em
relação ao de meninas em atos infracionais (13,5%). A respeito da natureza do
ato infracional, os dados apontam diferenças significativas quanto a variável
sexo. Verificou-se que os adolescentes do sexo masculino envolvem-se mais em
roubos/furtos/assaltos, utilizando arma de fogo como instrumento, enquanto que
as adolescentes praticam mais freqüentemente infrações que resultam em lesões
corporais causadas por arma branca.
Quanto à escolaridade,
registrou-se a freqüência regular à escola e, quando disponível o dado na fonte
documental, a última série cursada por cada adolescente. A escolaridade do
adolescente em conflito com a lei no município do Salvador revelou-se baixa,
com acúmulo de vários anos de atraso e de repetência escolar. Dentre os
adolescentes representados, 57,3% freqüentavam regularmente à escola. À época
do ato infracional, 12% dos adolescentes eram analfabetos; 45,4% cursavam ou
havia cursado até uma das séries do ensino elementar (1a. a 4a.
séries); 36,4% uma das séries do ensino fundamental (5a. a 8a.
séries) e apenas 4,0% haviam ingressado no ensino médio (2o. grau).
Sobre esta realidade, cabe a consideração de que o nível de instrução
influencia a trajetória do adolescente, podendo se tornar, juntamente com as condições
de saúde e história familiar, um forte componente de risco ou proteção (MOFFITT
& CASPI, 2000).
O percentual de 42,7% de adolescentes sem freqüência escolar inclui
aqueles que abandonaram a escola e os que nunca foram matriculados na rede de
ensino. Este dado ocupa um lugar importante como preditor da ocorrência de atos
infracionais (MINAYO et al., 1999; MOFFITT & CASPI, 2000). O abandono da
escola aparece na literatura como a
circunstância mais imediatamente ligada ao envolvimento em atos infracionais.
Embora a educação seja um direito fundamental (CURY, 2000), os princípios do direito à educação apresentados nos artigos
2o e 3o da Lei no. 9394/96 (Lei de Diretrizes e Base de
Educação Nacional) estão integrados aos demais princípios dos direitos sociais
(COSTA & LIMA, 2000). Nesta perspectiva, e diante do dado de que dentre os adolescentes
que freqüentavam à escola, a maioria (93,8%) estudava em escolas da rede
pública de ensino, ressalta-se não apenas a importância da garantia do direito
à educação, como também a necessidade de assegurar a qualidade do ensino
público enquanto um direito social (PORTELA, MOURA & BASTOS, 2000).
Como um indicador étnico, tomou-se a informação relativa a cor do
adolescente, cujo registro foi realizado no Boletim de Ocorrência sem uma
completa concordância por parte dos técnicos. Fato que, aliado a um elevado
percentual de ausência do registro (60%), dificultou o aproveitamento da
informação. Mesmo assim, pode-se observar que os adolescentes são, em sua
grande maioria, de cor parda (27,3%), seguidos pela cor negra (15,3%), grupo
ainda discriminado na sociedade baiana e com dificuldade de ascender a melhores
condições de vida.
O município do Salvador está dividido em dezesseis Regiões
Administrativas segundo critério sócio-demográfico. Em relação à Região
Administrativa de que provêm os adolescentes, a distribuição constante da
Tabela 3, abaixo, indica que a Região Administrativa do Rio Vermelho concentra
o maior número de adolescentes em conflito com a lei (10,6%), seguido por Liberdade (9,3%), Subúrbio
Ferroviário (9,1%) e Tancredo Neves (8,4%).
Os
bairros circunvizinhos ao Rio Vermelho vêm se destacando, na última década, por
apresentarem elevados índices de registros de mortes por causas externas (PAIM,
COSTA, MASCARENHAS & SILVA, 1999). Nas demais Regiões Administrativas estão
distribuídos 48,8% dos adolescentes. Salienta-se que foram encontrados para os
bairros da Barra e da Pituba, habitados em sua maioria por população de classe
média, 2,2% do total da amostra, o que evidencia ainda mais a estreita relação
entre a prática de atos infracionais e as condições de vida. Vale ressaltar,
porém, a limitação da leitura desse dado a partir de associações superficiais
entre pobreza e delinqüência, como bem assinala o estudo realizado por Minayo
et. al (1999). Análises mais aprofundadas se fazem
necessárias para esclarecer as complexas relações envolvendo a variável classe
social.
TABELA 3. Distribuição dos
adolescentes representados nas Ações Socioeducativas Públicas – Segunda Vara da
Infância e da Juventude por Região Administrativa do Município de
Salvador.
A tabela 4, a seguir, apresenta os percentuais relativos ao do consumo
de substância psicoativa (SPA) entre os adolescentes representados. Como SPA,
foram consideradas, neste estudo, todas as drogas lícitas e ilícitas. O uso de
SPA foi referido pela maioria dos adolescentes (65,1%). Este consumo, contudo,
não necessariamente aconteceu no momento imediatamente anterior ao ato
infracional, havendo sido referido pelo adolescente como atual ou eventual no
passado.
TABELA 4. Consumo de
Substância Psicoativa (SPA) entre adolescentes representados nas Ações
Socioeducativas Públicas – Segunda Vara da Infância e da Juventude
As
substâncias psicoativas consumidas pelos adolescentes são descritas na Tabela
4. Foram identificados tanto o relato de consumo de apenas uma SPA, como o uso
de mais de uma substância em combinações diversas. Dentre as SPA, destaca-se a
maconha, referida por 58,0% dos adolescentes que relataram consumo de SPA. As
substâncias menos mencionadas foram a cocaína (5,9%), solventes e medicamentos
– categorizadas como outras.
Uma análise da caracterização da história sócio-familiar mostra que em
84,4% da amostra dos casos de infração registrados, o adolescente nasceu e
reside na capital, contra apenas 11,4% de adolescentes nascidos no interior do
Estado.
Constatou-se
que 77,4% dos adolescentes têm registro paterno, enquanto 12,6% (n=84) não
possuem o nome do pai no registro de nascimento, percentual expressivo considerando-se
que se trata de um direito. Embora a Constituição Federal tenha avançado quanto
à superação de nomeações discriminatórias em relação aos filhos, seguindo a
legislação especial a mesma vertente para agilização de registro, não se
constitui, ainda, uma realidade a generalização do registro e a inserção do
nome do pai. Esta circunstância de ausência do nome do pai enseja mais do que o
desrespeito ao direito, afeta, sobretudo, a dignidade e a própria identidade do
jovem.
Quanto à inserção no mundo do trabalho, 48% dos adolescentes já
exerceram algum tipo de atividade laboral, para a maioria informal, como
colaborador dos pais em oficinas mecânicas, venda de alimentos como vendedor
ambulante ou em feiras livres, guardador ou lavador de carros. Através dessa
atividade, uma parcela dos adolescentes contribuía com a renda da família,
outros, sem contribuir, buscavam assegurar a própria subsistência. Um
percentual de 14,4% dos adolescentes relatam alguma inserção em atividade
social (projetos sociais, Organizações Não Governamentais).
O contexto
familiar de adolescentes em conflito com a lei
A partir da análise das Ações Socioeducativas,
objetivou-se caracterizar o contexto familiar dos adolescentes representados,
contemplando dados relativos à configuração familiar, ao papel do adolescente
em relação ao sustento da família, à presença de queixas contra o adolescente e
à existência de pedidos anteriores de internação.
Antes de apresentar essas características, deve-se considerar o
sub-registro constatado nos processos acerca de variáveis relevantes para
informar sobre a família dos adolescentes. É o caso das variáveis renda
familiar, profissão do pai, escolaridade do pai e da mãe, lugar do adolescente
na constelação familiar, em que, para 80% ou mais da amostra, não há qualquer
informação. Um sub-registro da ordem de 50 a 60% ocorreu para as variáveis que
informariam quem sustenta a família, pessoas da família que trabalham,
profissão da mãe, conflitos familiares e número de irmãos. A ausência de
registro sobre as variáveis ligadas ao pai pode estar relacionada ao grande
número de adolescentes provenientes de famílias em que o pai está ausente ou é
pouco presente.
Ficam limitadas nesta análise as condições de estratificar a
amostra para observar o comportamento de variáveis familiares centrais em
relação a ato infracional, a exemplo de nível sócio-econômico (renda familiar,
escolaridade dos pais). Quanto à inserção social dessas famílias, tem-se
apenas a indicação do bairro de origem do adolescente, sendo possível inferir
que a grande maioria dos adolescentes provém de segmentos de renda mais baixa,
com apenas 2,2% dos adolescentes residindo em bairros de classe média, como os
bairros da Pituba e Barra. Portanto, assume-se que a família aqui caracterizada
é a família das camadas populares, e alguns indicadores contribuem para essa
suposição, como por exemplo o expressivo percentual de famílias chefiadas por
mulheres ou em que a mulher é o principal responsável pelo sustento, acumulando
as funções de cuidador e provedor: é a situação típica das famílias
matrifocais, mais comuns nesses estratos populacionais, em que a mãe cria os
filhos sem a ajuda do parceiro e com a presença de parentes habitando no mesmo
domicílio (MINAYO et al., 1999). Como
pode ser visto na Tabela 5, 35,2% dos adolescentes representados provêm de
famílias matrifocais e 28% de famílias extensas, enquanto apenas 30% vêm de
famílias nucleares – mais freqüentes, estas, nas classes médias, mesmo
considerando sua relativa diminuição em face do menor número de casamentos e do
aumento dos divórcios na última década (IBGE, 2000). Para 6,1% dos
adolescentes, consta a informação de que moram sozinhos. Estes representam a
quase totalidade dos adolescentes que referiram nos processos viverem na rua,
sem manutenção do convívio familiar.
É importante ainda assinalar a grande diversidade de configurações
familiares encontrada, caracterizando sobretudo a realidade das famílias
extensas, que incluem: pai ou mãe, mais avós, tios, outros. A respeito destas
configurações, observou-se que 60% dos adolescentes possuem os pais vivos, 9,1%
são órfãos de pai, 4%, órfãos de mãe e 1,8% órfãos de ambos os genitores.
Enquanto em 54 (8,4%) das famílias incluíam o padrasto, a presença da madrasta foi identificada em apenas quatro famílias
(0,7%). Trinta (4,8%) adolescentes vêm de configurações familiares onde pai e
mãe estão ausentes.
Dados que fossem indicadores da natureza do vínculo
entre o adolescente e sua família foram investigados. O abandono na infância
ocorreu para 11,8% dos adolescentes, sendo que em 3,7% dos casos o adolescente
foi adotado. Em 14,2% dos casos, o adolescente havia fugido de casa e nove
adolescentes (1,3%) haviam sido expulsos da convivência familiar. Histórico de
maus tratos na família foi referido nos processos por 5,7% dos
adolescentes.
A diversidade observada quanto à configuração da família também é
constatada no que se refere à profissão do pai e da mãe. A despeito do
sub-registro da informação nos processos, pôde-se verificar que, em sua absoluta
maioria, trata-se de profissões que sugerem pequena qualificação e baixo nível
de escolaridade (biscate, gari, ambulante, motorista, office boy,
pescador, pintor etc.). Entre as mães,
observa-se, no percentual daquelas cuja profissão constava no processo,
um maior nível de qualificação da atividade profissional comparada aos pais.
TABELA 5. Caracterização das famílias dos
adolescentes representados nas Ações Socioeducativas Públicas – Segunda Vara da
Infância e da Juventude, segundo variáveis contextuais e comportamentais.
Na Tabela 5, acima, verifica-se que em 59,4% das famílias, apenas uma
pessoa é responsável pelo sustento familiar; mais de uma pessoa concorre para o
mesmo em 40,6% das famílias. A
realidade de famílias estruturadas em torno da mãe evidencia-se novamente
quando se observa quem sustenta a família, informação disponível para uma
fração importante da amostra, constatando-se que a mãe é o único provedor em
13,1% e o pai em 9,8% dos casos. O adolescente foi identificado como um contribuidor
da renda familiar em 22,9% dos casos.
É indireto o acesso à realidade das famílias considerando a presença de
conflitos direta ou indiretamente ligados ao ato infracional do adolescente.
Foram consideradas aqui as variáveis condição
de apresentante da família, queixas
familiares contra o adolescente e a existência
de pedidos anteriores de internação, como possíveis indicadores da
intensidade dos conflitos presentes. Os resultados relativos a essas variáveis
podem ser vistos na Tabela 5. Os processos indicam a família como apresentante
do adolescente, ou seja, como sujeito que registra queixa na unidade policial
especializada, Delegacia do Adolescente Infrator, contra o adolescente, em
apenas 4,6% dos casos. Nestes casos, freqüentemente o ato infracional cometido
pelo adolescente teve um ou mais membros da família como vítima.
Observou-se um expressivo percentual de conflitos envolvendo familiares
em 35,1% dos casos para os quais esta informação se encontra disponível
(n=328). A natureza desses conflitos pode ser apreendida ao se analisar os
tipos de queixas familiares sobre o adolescente (presentes em 24,1% dos casos),
cuja distribuição pode ser visualizada na Tabela 5, acima.
Por ordem de freqüência, destacam-se desobediência e abandono da escola; andar
em más companhias; perda de controle e agressividade, situação em que os
familiares relatam temer o adolescente; uso de substâncias psicoativas
associado à prática de ato infracional.
Em dez casos (1,7%), identificou-se no processo o registro de pedidos anteriores
da família para internação do adolescente, como se em caráter preventivo, dado
que, quantitativamente, não parece relevante, mas que, em termos qualitativos,
indica o desamparo em que as famílias podem se encontrar, sem recursos e
habilidades para lidar com seus filhos adolescentes nos primeiros sinais de uma
trajetória que conduz ao ato infracional e ao cumprimento de medidas
socioeducativas.
O contexto familiar do adolescente em conflito com lei no município de
Salvador, Bahia, não se distancia da realidade de famílias de adolescentes
latino-americanos (UNICEF, 2000). A ausência da figura paterna e a
predominância de famílias matrifocais têm sido características marcantes destas
famílias.
A família contemporânea tem sido reconhecida como organização social
complexa, sendo a diversidade de configurações possíveis uma dimensão desta
complexidade. Entretanto, suas funções afetivas e sociais, bem como seu papel
na prestação de cuidados especiais a crianças e adolescentes e seu papel na
garantia de seus direitos permanecem preservados a despeito da natureza de sua
composição. Nesta perspectiva, o conjunto de dados do presente estudo evidencia
a necessidade de políticas de apoio às famílias dos adolescentes em conflito
com a lei.
O ato
infracional
Os atos infracionais identificados na amostra foram categorizados
conforme sua natureza. Em caso da representação do adolescente pela prática
simultânea de mais de um ato infracional, prevaleceu aquele ato de maior
potencial ofensivo. A caracterização dos atos infracionais está apresentada na Tabela 6, onde se verifica maior ocorrência de atos
tipificados como roubo e furto (55,3%), seguidos por lesões corporais
(18,7%). Os homicídios ou sua tentativa
aparecem com um percentual de 5,7% e os estupros ou sua tentativa com 4,8%.
Quanto ao pequeno percentual observado para o porte de arma de fogo (3,5%),
cabe o esclarecimento de que estes casos corresponderam àqueles em que o
adolescente foi apreendido pelo fato exclusivo de estar portando arma de fogo,
não estando incluídos nesta estatística os casos em que o adolescente utilizou
arma de fogo como instrumento para a prática de ato infracional de outra
natureza, tais como roubo, homicídio ou estupro.
TABELA 6. Distribuição dos adolescentes representados nas Ações Socioeducativas Públicas – Segunda Vara da Infância e da Juventude de acordo com as características do ato infracional
Em seu conjunto, esses percentuais concorrem para caracterizar o ato
infracional cometido pelo adolescente como atos contra o patrimônio, partindo
de motivações diversas que não chegaram ser identificadas na sua totalidade
neste estudo, embora estejam relacionadas, a partir da leitura dos processos,
como associados à sobrevivência, à tentativa de adequar-se a um perfil de
consumo desejado, ao uso de substâncias psicoativas, entre outros. São menores
os percentuais de atos contra a vida e de estupro (art. 213 do Código Penal).
Esse quadro contrasta fortemente com o estereótipo, tão veiculado pela mídia,
enfatizando uma característica agressiva, perigosa e infra-humanizada do adolescente
em conflito com a lei.
Os instrumentos utilizados pelos adolescentes na prática do ato
infracional foram categorizados segundo características e potencial de ameaça à
integridade física da vítima, prevalecendo aquele de maior potencial de dano na
circunstância de utilização de mais de um instrumento simultaneamente. Recursos
corporais como socos, muros, pontapés e dentadas foram reconhecidos como instrumentos
de natureza específica.
Conforme
se pode ver na Tabela 6, 61,9% dos adolescentes fizeram uso de pelo menos um
instrumento, que se encontram caracterizados acima. Dentre os instrumentos
utilizados pelos adolescentes destaca-se a arma de fogo, em 20,8% dos casos.
Outros instrumentos referidos foram arma branca (14,0%), pedra, porrete ou
similar (7,6%) e socos, murros, pontapés ou dentadas (7,5%).
Dados relativos ao local de ocorrência do ato infracional também são
apresentados na Tabela 6, na qual se observa ser a via pública o local onde os
atos infracionais são praticados com maior freqüência - 45,0% dos casos. A
categoria via pública inclui localidades como as sinaleiras, ponto de ônibus,
entre outras. Os estabelecimentos comerciais despontam como segundo local de
maior freqüência dos atos infracionais (20,0%). Locais como a residência da
vítima, transporte coletivo, residência do adolescente, colégio ou sua
proximidade e instituições de abrigo ou internação para cumprimento de medida
socioeducativa também configuram cenários para a prática do ato infracional.
Quanto às instituições de abrigo ou internação, cabe a consideração de que
apesar da visibilidade que os eventos ocorridos nestes cenários ganham na
sociedade, especialmente pela sua veiculação através da mídia, constatou-se que
apenas 4,3% dos atos foram praticados neste contexto.
Quanto à prática do ato infracional, verificou-se que 58,5% dos
adolescentes haviam o praticado em parceria com pelo menos um indivíduo,
adolescente ou adulto (Tabela 6). Dentre os parceiros, em 29,4% dos casos tratava-se
de pelo menos mais um adolescente, em 20,2% teve-se pelo menos a participação
de um adulto e em 8,9% pelo menos um adolescente e um adulto tiveram
participação no ato infracional em co-autoria com o adolescente. Embora não se
trate de dados conclusivos, essa distribuição homogênea mostrando a igual
participação de adultos e de adolescentes como parceiros sugere que o
envolvimento em atos infracionais, na realidade de Salvador, não parece estar
tipicamente ligado à ação de gangues ou quadrilhas adolescentes, como em outras
realidades urbanas brasileiras. Por outro lado, essa presença expressiva do
adulto pode indicar um nível mais profundo de organização da criminalidade,
sugestão que poderá ser explorada em estudo futuro.
Com relação às vítimas, os dados revelam que em 78,2% dos atos
infracionais vitimaram pelo menos um indivíduo. Conforme apresentado na Tabela
7, a seguir, em 67,5% dos atos infracionais os adolescente vitimaram um único
indivíduo e em 12,5% mais de um indivíduo. Nesta mesma Tabela pretende-se a
caracterização da vítima.
Na maioria das vezes, a vítima era do sexo masculino, adulta – com idade
entre 18 e 55 anos, sem nenhuma relação anterior com o adolescente.
Verificou-se ainda que na maioria dos casos a vítima não estava armada, não
reagiu ao ser abordada pelo adolescente, não se encontrava sob efeito de
substância psicoativa, nem foi responsável pelo ato infracional, quer dizer:
não agiu de forma a favorecer a circunstância na qual ele se realiza nem
confrontou diretamente o adolescente. Sobre a vítima, os dados demonstram ainda
que na maioria dos casos (56,2%) ela não sofreu qualquer tipo de lesão e nos
episódios em que a vítima foi lesionada freqüentemente a lesão foi do tipo
temporária (34,1%). Dentre os casos que compuseram a amostra, verificou-se que
13,4 % das vítimas precisaram ser hospitalizadas em decorrência das lesões
sofridas e 7,8% foram a óbito, percentuais que sem dúvida indicam a ocorrência
de agressões graves; seria relevante comparar esses dados com os relativos a adultos,
para analisar a incidência desse nível de agressões nos dois grupos e constatar
o quanto os adolescentes se caracterizam como agressores, comparativamente a
outro segmento etário.
TABELA 5.
Características das vítimas dos atos infracionais segundo idade, sexo, relação com o adolescente e conseqüências do
ato
VARIÁVEIS |
N |
% |
Tipo |
|
|
Pessoa física
|
502 |
79,0 |
Estabelecimento comercial
|
140 |
21,0 |
Número |
|
|
Até uma pessoa
|
422 |
84,06 |
Mais de uma pessoa
|
80 |
15,94 |
Faixa etária |
|
|
Criança
|
27 |
6,4 |
Adolescente
|
88 |
20,8 |
Adulto
|
291 |
68,8 |
Idoso
|
17 |
4,0 |
Sexo |
|
|
Masculino
|
285 |
58,4 |
Feminino
|
178 |
36,5 |
Mais de uma vitima de sexo diferente
|
25 |
5,1 |
Relação da vítima com o adolescente |
|
|
Nenhuma
|
306 |
61,1 |
Pessoa do círculo de amizade ou convivência do adolescente
|
147 |
29,3 |
Familiar
|
33 |
6,6 |
Professor, educador, funcionário de instituição ou patrão
|
15 |
3,0 |
Estava sob efeito de substância psicoativa |
|
|
Sim
|
26 |
6,6 |
Não
|
368 |
93,4 |
Estava armada |
|
|
Sim
|
21 |
3,1 |
Não
|
455 |
68,2 |
Provocou o ato infracional |
|
|
Sim
|
79 |
83,4 |
Não
|
398 |
16,6 |
Reagiu ao ser abordada |
|
|
Sim
|
154 |
34,1 |
Não
|
298 |
65,9 |
Sofreu algum tipo de lesão |
|
|
Não
|
259 |
56,8 |
Temporária
|
157 |
34,1 |
Permanente
|
45 |
9,8 |
Socorrida pelo adolescente |
|
|
Sim
|
03 |
1,1 |
Não
|
268 |
98,9 |
Ficou hospitalizada |
|
|
Sim
|
55 |
13,4 |
Não
|
356 |
86,6 |
Foi a óbito |
|
|
Sim
|
35 |
7,8 |
Não
|
413 |
92,2 |
Com
relação aos adolescentes representados, 11,4% referiram haver sofrido algum
tipo de maus tratos ou tortura no momento da sua apreensão ou em momentos
subseqüentes, responsabilizando populares, policiais ou monitores da Casa de
Acolhimento ao Menor (CAM) pelas agressões sofridas. Como se pode ver na Tabela
8, a seguir, seis adolescentes, nesse período de tempo, apenas nessa amostra,
foram a óbito antes da conclusão do processo e aplicação da medida
socioeducativa. Estes dados refletem a necessidade de reflexão sobre a garantia
de direitos humanos e o papel do Estado e da sociedade na proteção integral ao
adolescente em conflito com a lei.
TABELA 8. Distribuição de ocorrências na fase processual.
No que se refere às medidas socioeducativas aplicadas, cuja distribuição
se apresenta na Tabela 8, acima, observa-se uma maior freqüência de liberdade assistida (44,4% dos casos),
seguida de internação (19,4%) e de advertência (13,7%). As demais medidas distribuem-se de modo esparso,
com baixas freqüências. Vale notar que ocorrem em alguns casos medidas
associadas, destacando-se obrigação de
reparar o dano, que, sozinha ou associada a outras medidas, aparece em 6,9%
dos casos.
Na Tabela 9 apresentam-se dados relativos à duração
da fase processual, compreendida, neste estudo, como período de tempo decorrido
entre a representação do adolescente pelo Ministério Público em Ação
Socioeducativa e a prolatação da sentença, O tempo médio de duração da fase
processual foi de 7,3 meses, com 12,6%
dos processos havendo se estendido por mais de um ano.
TABELA 7.
Duração da fase processual de Ações Socioeducativas Públicas, entre 1996-2002,
na Segunda Vara da Infância e Juventude
Tempo
transcorrido entre o oferecimento da representação e a sentença (em meses) |
N |
% |
Até 3 meses
|
75 |
17,5 |
De 3 a 6 meses
|
157 |
36,7 |
De 6 a 9 meses
|
113 |
26,4 |
De 9 a 12 meses
|
29 |
6,8 |
Mais de 12 meses
|
54 |
12,6 |
Desfecho
do processo
|
|
|
Concluído
|
412 |
67,4 |
Busca e apreensão
|
79 |
12,9 |
Em andamento
|
70 |
11,5 |
Arquivamento
|
24 |
3,9 |
Suspenso
|
26 |
4,3 |
No que diz
respeito ao desfecho do processo, observa-se na Tabela 9 que a maioria foi
concluída, havendo sido prolatada a sentença e aplicada a medida socioeducativa
ao adolescente. Entretanto, é significativo o percentual de processos
inconclusos, inclusive processos dos primeiros anos do período estudado,
1996-2002: 12,9% dos processos se encontravam suspensos com mandado de busca e
apreensão do adolescente; 11,5 % dos processos estavam em andamento, com
agendamento da próxima audiência; 3,9% dos processos foram arquivados, em
virtude do adolescente haver atingido a idade de 21 anos antes que a medida
socioeducativa fosse aplicada, nos termos do parágrafo único do art. 2o.
da Lei no. 8069/90; e 4,3% dos processos encontravam-se interrompidos, sem
indicação de sua continuidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados do estudo remetem à própria complexidade do ato
infracional e indicam a necessidade de sua contextualização, com a consideração
da condição de vida, perfil sócio-demográfico e contexto familiar do
adolescente. A complexidade do ato infracional vai além do ato praticado por um
ser em desenvolvimento e análogo ao tipificado como crime. Esta dimensão que se
projeta além não se reduz ao espaço do mundo jurídico. Partindo-se da descrição
das características dos adolescentes em conflito com a lei, representados em
Ações Socioeducativas Públicas, na Segunda Vara da Infância e Juventude, do
município de Salvador, pode-se depreender que a grande condição que aproxima o
jovem da prática infracional é a exclusão social, perpassando toda uma
trajetória de desenvolvimento e implicando uma configuração de situações e
indicadores de risco, tais como a baixa escolaridade, a residência em regiões
de elevados indicadores de violência e o consumo de substância psicoativa
associado à prática de atos infracionais.
A família do adolescente em conflito com a lei constitui um contexto
particular e, como apontam os resultados, demanda uma atenção especial. O
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na esteira da afirmação
constitucional, define o papel da família que, em co-responsabilidade com o
Estado e a sociedade, deve assegurar a proteção de suas crianças e adolescentes
e a garantia de seus direitos. Em contrapartida, as famílias dos adolescentes representados
apresentam certas características, a exemplo do subemprego dos pais e da
ausência paterna, que podem fragilizá-las para o exercício deste papel.
Dificuldades financeiras da família podem estar favorecendo o ingresso
precoce dos adolescentes no mundo do trabalho; alguns auxiliam familiares em
atividades informais por estes desempenhadas, outros desempenham nas ruas o
exercício de atividades como guardador de carros ou vendedor ambulante. Diante
desta realidade, reconhece-se que a rua, se pode, por um lado, oferecer meios
de subsistência, proporciona, por outro, a exposição a situações de risco, a
exemplo do próprio envolvimento em atos infracionais.
A realidade retratada no estudo
aponta para a perspectiva da Teoria da Proteção Integral, ou seja, para a
necessidade da integralidade da intervenção como implica, igualmente, no
julgamento do adolescente em conflito com a lei de forma contextualizada. Caso
não sejam considerados os princípios estruturadores da CDCA, pode-se
comprometer a efetividade da medida socioeducativa aplicada e o processo de
integração social do adolescente, repercutindo em prováveis episódios de
reiteração do adolescente na prática de ato infracional, de mesma natureza ou
de maior potencial ofensivo.
Neste ensejo, ressalta-se a importância da qualidade dos registros
psicossociais, realizados por profissionais de psicologia e serviço social da
equipe do serviço de Pronto Atendimento da FUNDAC. Estes registros, que compõem
os Relatórios Psicossociais, apresentam elementos substanciais de
caráter interdisciplinar revelando a imprescindibilidade de uma atuação
multiprofissional para o atendimento do
adolescente em conflito com a lei. Sem dúvida, estes documentos, isto é, os
relatórios dos Assistentes Sociais, dos Psicólogos e/ou Pedagogos, podem
oferecer importantes subsídios para os operadores jurídicos e fortalecem a
importância da interação nos termos do preconizado nos artigos 150 e 151 do
ECA. Entretanto, neste estudo, constatou-se que, mesmo nos valiosos Relatórios
Sociais, houve subregistro de informações, especialmente sobre a realidade
familiar, área de grande relevância para a contextualização do ato infracional
aqui enfatizada.
Quanto
à dinâmica do devido processo legal foi constatado que os adolescentes não são
acompanhados sistematicamente por Defensores Públicos na fase da Delegacia
Especializada nem tampouco na oportunidade da oitiva informal pelo órgão do
Ministério Público. Embora não sejam fases judiciais, estes momentos posteriores à apreensão do jovem pela polícia ou
por outros cidadãos, constituem
momentos diferenciados para a sua defesa. A desinformação de muitos operadores
do direito sobre o fluxo dos procedimentos após o encaminhamento dos jovens
para a lavratura do Boletim de Ocorrência, sobre a natureza das peças
processuais, sobre a terminologia específica – diferenciada daquela do Direito
Penal – expressa, em diferentes momentos da pesquisa, que ainda persiste o
cunho ideológico residual do paradigma anterior mesclando-se no conjunto da apuração do ato infracional.
O substancial achado relativamente ao número de processos concluídos – 67,4% -
revela que, não obstante a afirmação constitucional da prioridade absoluta que
deve ser conferida aos direitos infanto-juvenis, como uma co-responsabilidade
da família, da sociedade e do Estado (e
também do Estado-Juiz), esta priorização não está sendo compreendida. No
Parágrafo único do art. 4o do Estatuto da Criança e do Adolescente
é explicitada esta garantia de
prioridade como a que compreende, entre outros, a precedência de atendimento
nos serviços públicos ou de relevância pública, conforme alínea “b”. As dificuldades reais quanto à carência
de servidores, serventuários, digitadores, oficiais de justiça para cumprir mandados
de cientificação, notificação ou de intimação, o acúmulo de mandados de busca e
apreensão sem cumprimento, estão, ainda, a revelar determinadas limitações de
planejamento e de orçamento específico do Poder Judiciário para esta área. É
nesta circunstância que a atuação do
órgão do Ministério Público como instituição tem, entre outras funções, o
poder-dever de fiscalizar de que maneiras, na prática, as prioridades em
relação ao grupo juvenil são observadas. Fiscal da lei quanto ao curso
processual, também a este órgão lhe é facultado atuar, nos termos do art. 129
da Constituição Federal, na defesa dos interesses difusos e coletivos. Quanto à
população infanto-juvenil, prioritariamente, o art. 201 do ECA explicita o
elenco das atribuições ministeriais. A natureza da fiscalização do Promotor de
Justiça é em relação ao cumprimento, a observância e o respeito ao quanto
estabelecido em lei pois não é função ministerial a fiscalização dos serviços
públicos de responsabilidade do Poder Executivo. Esta deve ser exercida pelos
órgãos competentes do próprio Executivo, bem como dos segmentos especializados
da sociedade civil. A fiscalização do Ministério Público deve ser supletiva,
mantendo com os segmentos da sociedade civil canais de conversão dos quais
possa extrair as demandas necessárias e urgentes, a justificar sua intervenção
imediata (PAULA, 2002).
Quanto à questão do planejamento, dentro do Poder Judiciário, para suprir as necessidades dos cartórios com pessoal qualificado para dinamizar os autos processuais, o tema importa na própria busca de racionalidade administrativa que contemple as prioridades constitucionais. Em face da complexidade do ato infracional dos adolescentes na atualidade, estas prioridades no planejamento tanto do Poder Judiciário (ampliação dos serviços cartorários, modernização dos serviços internos, informatização, reciclagem de servidores, dos escrivães, dos escreventes, entre outros) quanto dos serviços públicos do Poder Executivo (segurança pública, através da polícia militar e da Delegacia Especializada) deveriam ser definidas a partir dos critérios de magnitude, vulnerabilidade, factibilidade e transcendência (OPAS, 1965).
Assim, o revelado no estudo sobre o percentual de duração dos processos de Ações Socioeducativas Públicas com mais de doze meses (12,6%) confere elementos para identificar quantas variáveis de procrastinação estão implicadas no princípio da celeridade processual.
O presente estudo aponta, ainda, a importância de promover investigações futuras e intensivas, especialmente de caráter interdisciplinar, sobre a natureza das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei. A constatação de que 44.4% das sentenças prolatadas aplicaram aos adolescentes a medida socioeducativa da Liberdade Assistida não pode ser analisada de forma isolada do conjunto de variáveis relativas à natureza do ato infracional, da escolaridade do jovem, do seu contexto familiar, das conseqüências para a (s) vítima (s). Nesta mesma perspectiva, a informação quanto às medidas socioeducativas de internação prevista no art. 112, inc.VI do ECA, – que perfazem 19.4% - não expressam, por si só, inobservância da excepcionalidade da privação da liberdade.
O que se depreende deste estudo é que, nos termos do que pondera Costa (2001, p.85), “ o adolescente, ao ter que responder por seus atos perante a Justiça da Infância e da Juventude, tendo que ouvir as acusações e defender-se, está, na verdade, educando-se – mais pelo discurso das palavras – pelo curso dos acontecimentos.” Assim, também o Poder Judiciário e o Ministério Público, a Defensoria Pública, os Advogados em geral, o sistema policial, a equipe interprofissional, todos, enfim, juntamente com a sociedade civil e com a própria família de cada adolescente em particular, deveria ser partícipe desta ação pedagógica diferenciada que o novo Estatuto da Criança e do Adolescente faculta.
A
contribuição deste estudo pode ser enunciada em dois níveis: o primeiro, o da
compreensão da realidade psicossocial do adolescente em conflito com a lei, em
qualquer uma das medidas socioeducativas definidas no art. 112 da Lei no.
8069/90, otimizando a atuação dos profissionais que o assistem; o segundo
nível, relativo à prevenção da delinqüência juvenil, mediante a promoção do
desenvolvimento da família e à disponibilização de suportes para as mesmas.
Embora
não estejam explicitamente incluídas nesta investigação as proposições para
cursos interdisciplinares na área dos Direitos da Criança e do Adolescente, com
ênfase no campo do adolescente em conflito com a lei, diversas questões emergem
do conjunto desta contribuição científica.
Afinal, muito além do ato infracional, os temas da adolescência, do
direito e da interdisciplinaridade constituem convite de estudo e de
compromisso com a paz social e com o bem estar das gerações futuras.
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